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Ele estava
acorrentado à Hiraeth. A cada passo que se distanciava, as correntes enrijeciam
puxando-o para trás. Como se libertar de alguém que tinha como algema seu próprio coração?
Do alto de
uma árvore, o elfo observou o sol ainda baixo sobre as montanhas no horizonte,
ascendendo o dia ao longo que cobria os campos de capim além da visão do reino
de Bielefeld. As cenas pesarosas da noite anterior visitavam sua mente
repetidas vezes, importunas como uma lembrança descartável que insistia em
fazer parte da memória rotineira.
Lembranças.
Os elfos púrpuras
eram nômades ávidos, vivendo numa caravana insistente pelo mundo de Arton. Não
se sabia ao certo de onde vieram e há quantos séculos surgiram, mas era claro
que não haviam conseguido achar o seu lugar. A raça de pele roxa e cabelo congênere
estabelecia-se pouco tempo em um território — menos ainda era seu contato com os
demais povos do Reinado, na maioria das vezes sendo apenas fábulas misteriosas
contadas à crianças incautas e que eram feitas de troça pelos elfos de Lenórienn.
Mas um segredo ainda mais enigmático se ocultava em sua existência. Atingida a
maturidade de um elfo púrpura, seu coração transformava-se em uma joia, que uma
vez palpável, devia ser guardada em silêncio ou entregue à uma pessoa de
confiança que a assegurasse. Caso caísse em mãos erradas, o elfo teria sua vida
comprometida a uma eternidade de escravidão aos desejos de seu dono, possuidor
do poder de sua existência.
Quando Simion
completara cem anos de sua vida longeva, seu pai, líder da caravana de seu povo,
honrou seu nome com um casamento prometido a filha de um de seus compatriotas.
Os elfos púrpuras mantinham a tradição rígida de casar-se entre si para que
seus segredos não esvaíssem ao mundo, mas Simion relutou contra a ideia. Depois
de meses de tormento, o rapaz revelou que havia sido desperto. Uma vez que o elfo púrpura tinha de presentear seus
coração a uma alma segura, a paixão dele era eterna. Um elfo da raça nunca
seria capaz de amar outra pessoa, uma vez que esse sentimento fosse despertado em seu íntimo. E Simion havia
se apaixonado por uma humana.
Tomado pelo
sentimento de rebeldia, e motivado pela fúria de seu pai e os protestos de seu
povo, Simion fugiu com a joia em mãos, viajando ainda madrugada, para entregar
o presente à Hiraeth, a humana que havia sido a responsável pelo seu amor. Ela
por outra vez, era uma itinerante que há meses havia cruzado seu caminho. Feita
de beleza e cabelos de fogo, a menina correspondera sua paixão; Simion só não
poderia saber que o resto da história seria sofrimento, Hiraeth também possuía
segredos ocultos.
— Está na
hora. — a voz veio de baixo da árvore. O elfo despertou de seus devaneios
quando viu a bruxa aproximando-se, vestia uma túnica verde escura que se
escondia por de baixo de uma capa cinzenta e de tecido grosso que se arrastava
ao chão pelo caminho feito. A mulher escondia o rosto sob o capuz.
— Hora de
quê? — perguntou Simion intrigado. Saltou da árvore e caiu ao seu lado,
analisando o rosto de Hiraeth com cautela.
— Você se
esqueceu? — ela ergueu a mão e tocou seu rosto — Não o culpo, ontem foi uma
noite difícil e dolorosa, como está se sentindo?
Simion fechou
os olhos enquanto se amaldiçoava por amá-la. Era algo além de seu controle, que
desfalecia os pensamentos de ódio, vingança, bastava um toque.
Ele fez que
sim com a cabeça. E depois:
— Para onde
vamos?
— O ritual —
ela disse. Simion gelou por dentro. Lembrou-se
do dia que era do mês, sua mente estava em frangalhos depois das torturas que
sofrera. Os olhos de Hiraeth faiscaram
quando pareceu notou interesse no semblante do elfo. — Espero que tenha pego
tudo que lhe pedi.
— Tudo — confirmou.
— Apenas não havia me lembrado que era hoje
— Amanhã —
ela lhe corrigiu e então abaixou o braço. — Mas viajaremos hoje, temos de estar
no terreno à meia-noite.
— Pegarei os
objetos arcanos.
Ela sorriu.
— Eu te amo. —
disse.
* * * * *
Quando
guardou o último utensílio na bolsa de componentes, um par de asas de morcego
amarrados em uma fita feita raiz, Simion deixou escapar uma lágrima de
desespero e socou a parede. Seu coração encontrava-se escuro, sua alma pesada. Os
dois iriam juntos para o inferno. A joia que era seu coração podia não ser
mágica, mas carregava dentro de si a imortalidade de sua raça. Hiraeth era uma
humana, enquanto ele um ser de vida longa. Quando a mulher tocara no relicário
pela primeira vez, Simion pôde provar da sensação que os mais velhos de seu
povo descreviam: os sentimentos daquele que segurava a joia eram partilhados
pelo seu dono, ambos se tornavam um, o elfo conheceu as sombras mais obscuras
do passado de Hiraeth, e naquele momento descobrira que era uma bruxa.
Ela o
convenceu de que esse fato poderia ser facilmente ignorado se fosse amor
verdadeiro, e ele se forçou a acreditar nisso por um tempo. Mas Hiraeth era uma
mortal de vida curta, e quando o primeiro mês de lua cheia surgiu, ela lançou
sobre a joia uma maldição. A vida do elfo seria drenada toda lua completa de
cada meses, reduzindo sua longevidade e dando juventude à alma de Hiraeth. Os
dois viveriam a mesma quantidade de dias de vida, os mesmos meses, os mesmo
anos. Morreriam juntos.
Simion
carregou os equipamentos do ritual para fora, montando no cavalo junto à mulher
e partindo em viagem. Trincou os dentes se amaldiçoando por àquilo. Ele sabia
para onde estavam indo, e sabia como dar fim a seu sofrimento. Que fosse
rápido, trair Hiraeth ficava mais difícil à cada hora. E se não o fizesse nesse
mês, talvez fosse tarde demais.
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