sábado, 3 de janeiro de 2015

O Veneno de Minha Alma - Parte 2

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                Ele estava acorrentado à Hiraeth. A cada passo que se distanciava, as correntes enrijeciam puxando-o para trás. Como se libertar de alguém que tinha como algema seu próprio coração?

                Do alto de uma árvore, o elfo observou o sol ainda baixo sobre as montanhas no horizonte, ascendendo o dia ao longo que cobria os campos de capim além da visão do reino de Bielefeld. As cenas pesarosas da noite anterior visitavam sua mente repetidas vezes, importunas como uma lembrança descartável que insistia em fazer parte da memória rotineira.

                Lembranças.

                Os elfos púrpuras eram nômades ávidos, vivendo numa caravana insistente pelo mundo de Arton. Não se sabia ao certo de onde vieram e há quantos séculos surgiram, mas era claro que não haviam conseguido achar o seu lugar. A raça de pele roxa e cabelo congênere estabelecia-se pouco tempo em um território — menos ainda era seu contato com os demais povos do Reinado, na maioria das vezes sendo apenas fábulas misteriosas contadas à crianças incautas e que eram feitas de troça pelos elfos de Lenórienn. Mas um segredo ainda mais enigmático se ocultava em sua existência. Atingida a maturidade de um elfo púrpura, seu coração transformava-se em uma joia, que uma vez palpável, devia ser guardada em silêncio ou entregue à uma pessoa de confiança que a assegurasse. Caso caísse em mãos erradas, o elfo teria sua vida comprometida a uma eternidade de escravidão aos desejos de seu dono, possuidor do poder de sua existência.

                Quando Simion completara cem anos de sua vida longeva, seu pai, líder da caravana de seu povo, honrou seu nome com um casamento prometido a filha de um de seus compatriotas. Os elfos púrpuras mantinham a tradição rígida de casar-se entre si para que seus segredos não esvaíssem ao mundo, mas Simion relutou contra a ideia. Depois de meses de tormento, o rapaz revelou que havia sido desperto. Uma vez que o elfo púrpura tinha de presentear seus coração a uma alma segura, a paixão dele era eterna. Um elfo da raça nunca seria capaz de amar outra pessoa, uma vez que esse sentimento fosse despertado em seu íntimo. E Simion havia se apaixonado por uma humana.

                Tomado pelo sentimento de rebeldia, e motivado pela fúria de seu pai e os protestos de seu povo, Simion fugiu com a joia em mãos, viajando ainda madrugada, para entregar o presente à Hiraeth, a humana que havia sido a responsável pelo seu amor. Ela por outra vez, era uma itinerante que há meses havia cruzado seu caminho. Feita de beleza e cabelos de fogo, a menina correspondera sua paixão; Simion só não poderia saber que o resto da história seria sofrimento, Hiraeth também possuía segredos ocultos.

                — Está na hora. — a voz veio de baixo da árvore. O elfo despertou de seus devaneios quando viu a bruxa aproximando-se, vestia uma túnica verde escura que se escondia por de baixo de uma capa cinzenta e de tecido grosso que se arrastava ao chão pelo caminho feito. A mulher escondia o rosto sob o capuz.

                — Hora de quê? — perguntou Simion intrigado. Saltou da árvore e caiu ao seu lado, analisando o rosto de Hiraeth com cautela.

                — Você se esqueceu? — ela ergueu a mão e tocou seu rosto — Não o culpo, ontem foi uma noite difícil e dolorosa, como está se sentindo?

                Simion fechou os olhos enquanto se amaldiçoava por amá-la. Era algo além de seu controle, que desfalecia os pensamentos de ódio, vingança, bastava um toque.

                Ele fez que sim com a cabeça. E depois:

                — Para onde vamos?

                — O ritual — ela disse. Simion gelou por dentro.  Lembrou-se do dia que era do mês, sua mente estava em frangalhos depois das torturas que sofrera. Os olhos de Hiraeth  faiscaram quando pareceu notou interesse no semblante do elfo. — Espero que tenha pego tudo que lhe pedi.

                — Tudo — confirmou. — Apenas não havia me lembrado que era hoje

                — Amanhã — ela lhe corrigiu e então abaixou o braço. — Mas viajaremos hoje, temos de estar no terreno à meia-noite.

                — Pegarei os objetos arcanos.

                Ela sorriu.

                — Eu te amo. — disse.

* * * * *

                Quando guardou o último utensílio na bolsa de componentes, um par de asas de morcego amarrados em uma fita feita raiz, Simion deixou escapar uma lágrima de desespero e socou a parede. Seu coração encontrava-se escuro, sua alma pesada. Os dois iriam juntos para o inferno. A joia que era seu coração podia não ser mágica, mas carregava dentro de si a imortalidade de sua raça. Hiraeth era uma humana, enquanto ele um ser de vida longa. Quando a mulher tocara no relicário pela primeira vez, Simion pôde provar da sensação que os mais velhos de seu povo descreviam: os sentimentos daquele que segurava a joia eram partilhados pelo seu dono, ambos se tornavam um, o elfo conheceu as sombras mais obscuras do passado de Hiraeth, e naquele momento descobrira que era uma bruxa.

                Ela o convenceu de que esse fato poderia ser facilmente ignorado se fosse amor verdadeiro, e ele se forçou a acreditar nisso por um tempo. Mas Hiraeth era uma mortal de vida curta, e quando o primeiro mês de lua cheia surgiu, ela lançou sobre a joia uma maldição. A vida do elfo seria drenada toda lua completa de cada meses, reduzindo sua longevidade e dando juventude à alma de Hiraeth. Os dois viveriam a mesma quantidade de dias de vida, os mesmos meses, os mesmo anos. Morreriam juntos.



                Simion carregou os equipamentos do ritual para fora, montando no cavalo junto à mulher e partindo em viagem. Trincou os dentes se amaldiçoando por àquilo. Ele sabia para onde estavam indo, e sabia como dar fim a seu sofrimento. Que fosse rápido, trair Hiraeth ficava mais difícil à cada hora. E se não o fizesse nesse mês, talvez fosse tarde demais.

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