segunda-feira, 28 de maio de 2012

A Igreja do Bem e do Mal


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A IGREJA DO BEM E DO MAL



Chegou uma carroça puxada por bois. A carga macabra era composta por mulheres de todas as idades. Velhas, moças e crianças. O povo aplaudia.

- Um momento de silêncio, em nome de Deus, por favor. – gritou o padre do alto do palanque.

As pessoas iam parando de berrar aos poucos, um burburinho tomou conta do povo que ia se acotovelando brigando por espaço, uma busca incessante por uma visão melhor do espetáculo que iria começar.

- Hereges! – gritou um homem.

O burburinho se intensificou até se transformar em berros.

Prostrado ali, longe da visão de muitas pessoas, Daniel olhava para o céu, analisando quanto tempo levaria. O sol ia se afastando e tudo indicava que a noite de lua seria insuficiente para iluminar sua volta para casa.

Daniel morava longe. Era a primeira vez que havia entrado naquele vilarejo e o fizera por ordem de seu mestre:

- Bruxos serão queimados daqui a cinco noites – havia dito ele – Quero você por lá, é uma cerimônia que todos devemos ver. Principalmente gente como nós.

Daniel era um bruxo – aprendiz de um. Novo e inexperiente, nunca havia visto em sua vida uma sentença a hereges. Embora soubesse que mulheres eram caçadas e queimadas na fogueira da Inquisição, Daniel nunca havia visto cerimônia como esta.

- Sim, sim – exclamou o padre ao povo, fazendo gestos com as mãos, pedindo silêncio a plebe. – São hereges, bruxas. Cuspiram na cruz, invocaram demônios, talvez tenham condenado toda nossa vila perante Deus.

As pessoas vociferavam.

- Mas ainda assim haverá um julgamento perante os olhos Dele.—continuou o padre. – E vocês são testemunhas, todos nós somos.

Daniel olhou para o céu novamente, e havia um motivo maior a fazê-lo. Fitou de longe as crianças que seriam julgadas e ponderou que tudo àquilo começasse logo. Sabia que enquanto a sentença fosse a tarde, seria mais branda: enforcamento.

Caso contrário, se a noite caísse e o céu vestisse preto, as crianças iriam ter de partilhar a dor candente da fogueira, o mesmo que aconteceria às mulheres mais velhas.

A Igreja era crente do principio que toda bruxa deveria ser julgada sob o escuro, mas purificada com a luz.

Daniel sonhara uma vez que era queimado vivo – mais que isso, era um presságio. O pouco dos dons que as pessoas normais ainda partilhavam dos bruxos.

Lembrou consigo mesmo, da ardente dor que era ser consumido pelo calor e pela fumaça. Talvez fosse a pior forma de morrer.

- Sem dúvidas que é. – disse uma voz em suas costas.

Daniel se virou e viu seu mestre, um homem franzino de cabelo escuro e pele clara. Respondia apenas pela alcunha de “bruxo” e nome mais algum.

- Morrer na fogueira – continuou, como se pudesse ler a mente do aprendiz. – Certamente é a forma mais dolorosa de se morrer.

Daniel o ficou observando.

- Mas não para um herege. – disse ele.

- Como? – perguntou Daniel.

A carroça chegou perto do cadafalso e os soldados abriram as grades por de trás dela. Havia uma enorme cortina vermelha em volta do palanque, como num circo ou teatro. A Inquisição era um espetáculo a parte.

 - Há muitos instrumentos cruéis para se torturar hereges. Bruxas em especial – disse o mestre para o aluno. – Você ficaria impressionado com a criatividade e engenho para nos torturar, rapaz.

As bruxas foram empurradas para subir ao palanque de madeira. Os xingamentos e os berros se intensificaram. Frutas e repolhos podres foram jogados contra o rosto delas e das crianças. Não havia perdão para heresia.

- Elas sofreram torturas severas na prisão daqueles padres. – analisou Daniel.

- Sem sombra de dúvidas. Vê aqueles buracos na garganta e no peito? – o bruxo apontou com o queixo. – Chama-se gargantilha do herege, um instrumento que prendem em seu pescoço impedindo movimentos bruscos, inclusive falar ou respirar.
Daniel recuou o rosto e mordeu o lábio inferior como se sentisse dor.

- Não se engane, rapaz. Você nem sequer viu um empalamento. Isso não é nada. – riu sem graça alguma.

Em seguida, houve um discurso longo e demorado, a noite vinha chegando. As crianças foram enforcadas, as pessoas bradaram o nome de Deus.

As preparações foram feitas para o espetáculo, era hora da fogueira. As cortinas se abriram.

***

Quando saíram da praça e se embrenharam num beco, Daniel correu à frente sem fôlego pelo terror que assistira.

- Isso é Deus? – questionou horrorizado depois de toda a tortura.

- Não – disse o bruxo. – Isto é Um Deus.

- Deus. Isto é um Deus...

O bruxo fez que sim.

- Prefiro morrer sem ele, então. – foi um trincar de dentes, uma mistura de ódio e pavor.

O bruxo balançou a cabeça.

- Não se pode julgar o que as pessoas fazem em nome de seu Deus – disse o bruxo, tentando explicar. – Não há como apontar as verdadeiras intenções de um Deus pelas ações de seus seguidores e era isso que eu –

- Como é? – interrompeu Daniel abruptamente. – Podemos sim e devemos! Milhares de pessoas estão morrendo em nome Dele. A Igreja é uma Ordem como todas as outras, inclusive como a nossa. Ela responde pelos atos de seus membros. O que é Deus sem seus servos? Ele responde pelos atos deles, sim!

- Não é tão simples.

- E por que não? – houve um momento de resignação por parte do outro. – Se esse é o caso, que Ele responda contra seus fiéis, então. Que Ele desça e diga a todos que estão errados. Isso não é tão difícil, Ele é Deus!

- Não é tão simples. – repetiu o outro.

- Por quê?

Silêncio.

- Por quê?!

- Deus está preso. – disse o bruxo.

Pararam por um momento.

- O quê? Como é?

- Deus está preso, – explicou o bruxo. – Está preso no mundo dele. Assim como nós estamos no nosso.

O outro raciocinou.

- Só há uma forma de encontrá-lo. – disse o bruxo.

- Morrendo. – disse Daniel, elaborando cada palavra.

O bruxo ergueu o rosto.

 – Morremos para passar para o outro lado e ver Deus no mundo dele... – disse Daniel.

O outro balançou a cabeça. O rapaz ergueu uma sobrancelha indagando se estava errado.

- Ou será que é Ele que morre? – perguntou o bruxo – Para vir pra cá.

O rapaz deixou o queixo pender. Uma centelha de curiosidade faiscou-lhe dos olhos.

- Deus já veio para cá?! – exaltou na pergunta. Então corrigiu: – Algum Deus, já veio pro nosso mundo?

O bruxo deixou surgir um sorriso de canto da boca, satisfeito com o aprendiz.

- Mas é claro.

Daniel se entusiasmou.

- Já viu algum?!

- Sim. Este é o significado de ser um bruxo, rapaz. Aprender como vê-los, e vê-los de fato, todos os dias.

O rapaz ergueu o corpo, como se já pudesse pressentir o dia em que enxergaria o primeiro Deus. Já imaginava como seria a forma de um; que perguntas faria se O visse.
- Eu verei um deles, algum dia? – perguntou.

- Certamente que sim.

- Onde posso encontrá-los?! – quase um grito.

Silêncio.

O bruxo cruzou os braços. Tomou por postura rígida e ergueu o queixo, olhando para o garoto de cima. Seriedade de professor prestes a ensinar algo importante; um cuidado firme – as mãos de um médico prestes a cortar artéria com um bisturi.

- Olhe ao redor.

O garoto inspirou fundo e o fez. Virou o rosto com cautela para a esquerda e depois para a direita. O beco escuro e sujo continuava lá e mais ninguém.

- Não vejo nada além de mim e você. – disse.

- Olhe de novo. – falou o bruxo. – Com mais cuidado dessa vez.

O rapaz ficou mirando a seriedade de seu professor. Voltou a fazer o que lhe fora ordenado. Olhou ao redor com cautela observando cada buraco no chão, cada tijolo velho nas paredes e todos os cantos escuros do beco. Não via nada.

Por um instante pensou que ainda não estivesse pronto. A capacidade necessária que seu mestre obtinha para enxergar as formas divinas dos possíveis deuses na Terra talvez ainda não o tivesse agraciado. Mas ouviu de súbito um ruído, tal qual houvesse alguém corrido assustado para um canto que não conseguia enxergar.

Sem pensar duas vezes o rapaz pegou impulso e correu á largas pisadas pelos becos que serpenteavam a cidade.

Ao chegar no final do caminho, viu que perseguia na verdade um menino. Um mendigo que saia da escuridão, indo para as ruas principais do vilarejo.

O rapaz viu as carroças de palha e de estrume sendo puxadas e noutro lado a praça principal, onde havia sido feito o enforcamento e a fogueira.

Plebeus, monges, mendigos e vassalos se juntavam – as mesmas pessoas que horas atrás haviam se agrupado para assistir às torturas e morte que os nobres presenteavam. Daniel ficou estacado.

Poucos segundos depois o bruxo aproximou-se.

- Achou? – disse ele.

- Não – falou o rapaz, desapontado. – Eu me enganei.

O bruxo deixou um leve sorriso escapar.

- Não, você não se enganou.

Daniel o fitou. O bruxo voltou-se para o aluno surpreso.

- Onde estão os deuses? – perguntou.

- Estão ali. – disse o bruxo, apontando com a cabeça para as pessoas agrupadas. – Ali também. Alguns estão naquele canto lá. Estão por toda parte.

- Eles não são deuses – murmurou Daniel. – São pessoas, piores que animais. Lavradores de terra, vassalos, estupradores, bandidos. Nenhum deus.

- Você está enganado, meu rapaz. – disse o bruxo. Daniel o olhou de imediato. – Todos eles são os deuses para quem eles mesmos oram. Deus veio parar nestas terras, e está preso dentro de todos nós.

Tempo.

- Se isso é verdade, então quem responde às preces deles quando oram? – perguntou Daniel, indignado.

- Eles mesmos, oras.

- E como poderiam? – disse. – Se não há deus nenhum que possa atendê-los?!

- Mas eles são, caro Daniel. – o bruxo sorriu. – Quem pede por justiça? Quem ora aos deuses pela morte dos bandidos, estupradores e ladrões?

Daniel não disse nada.

- E quem atende suas preces, Daniel? – levantou uma sobrancelha. – Quem é o carrasco que põem o fogo das fogueiras e puxa a alavanca da forca?

Tempo.

- Somos nós mesmos, rapaz. Não é deus que desce nas nossas terras e enforca, tortura e queima. Somos nós mesmos. Nós pedimos, nós fazemos.

Daniel engoliu em seco.

- E isso é uma magia poderosa, não? – disse o bruxo em um sorriso sombrio e espantoso. – Nós mesmos fazemos os milagres que pedimos.

- Isso é horrível! Deus não existe –

- Está enganado – interrompeu-o com seriedade súbita. – Ele existe; Eles existem. Estão por toda parte. Apenas são poucos os que conseguem enxergar isso.

Silêncio. Daniel sorveu a ideia como um cubo de gelo derretendo em chapa quente.

- Isso é horrível. – disse ele.

- Não, Daniel. É pior. – a resposta veio de um olhar severo. – Deus não está morto, ele está entre a gente, e é cruel.

- Antes fosse só isso, mas ele está entre nós e quer dizer que já não está mais no lugar de onde veio.

Daniel o fitou fundo. O bruxo ergueu o rosto vendo o céu se fechar em escuridão.

- Se ele veio pra cá, para onde iremos quando morrermos?

Cortinas.


quarta-feira, 9 de maio de 2012

Pássaros e Vermes

E aí, povo sumido. Estava cá eu dando uma olhada nos contos que eu tinha guardado pra revisar e achei esse aqui. Dei uma editada nele até chegar num ponto em que fiquei satisfeito e aqui estou para postar. Engraçado é que faz tempo que tinha escrito ele, só pra ter uma ideia ele data como de Junho do ano passado.

Enfim, sem mais delongas:



PÁSSAROS E VERMES


A Máfia era o poder, o sinônimo da força. Sempre foi. E eu estava aprendendo aquilo com o tempo que me fora dado para caminhar e observar. Como as coisas funcionavam na cidade deserta de Cabo Seguro.

Eu era bem novo, uns dezoito, dezenove anos, não mais que isso. Minha vida sempre foi o caos em que a maioria dos garotos dessa idade achavam ser. Mas eu realmente era diferente.

Vivia entre os pássaros e os vermes.

E mesmo naquela época, eu já sabia disso. Porque, embora eu queira dizer aqui que não, a verdade é que passei muito dos meus dias reclamando de como tudo estava uma merda. De como a vida era injusta e como sempre me negava oportunidades. E teria passado a vida inteira reclamando se todos os caminhos que se abriram para mim não me levassem a Máfia.

Então lá estava eu, novo de vida e ainda mais novo naquele ramo.

Caminhando na rua empedrada cinza e esburacada, de subidas e descidas sem cimento ou pavimentação, encontrei-me de repente na terra e lama, onde nem o melhor dos sapatos resistiria àquelas feridas. Eu não tinha o melhor dos sapatos.

- Pra onde vamos? – perguntei.

Minha função naquela época era ir e vir com Roberto, um dos integrantes ativos da Máfia de Cabo Seguro. Caminhávamos dias e horas por ruas desertas e perigosas da cidade, cobrando pagamentos antisgos, recebendo pedidos novos. Observar tudo atentamente era o meu trabalho e o que fazia de melhor. Com o tempo você aprende a sorver a informação toda. O que ainda não vhavia aprendido é ficar calado, coisa que Roberto era muito experiente e já estava irritado pelo meu aprendizado lento.

- Pra onde vamos, agora? – voltei a perguntar depois de um longo silêncio.

- Até um amigo meu. Logo ali. – respondeu Roberto, apontando com a cabeça para uma direção alheia, refinado. Colocava um cigarro no canto da boca enquanto procurava por um isqueiro nos bolsos do paletó.

Meio dia e já havíamos ido e voltado diversas vezes por àquela rua – eu inclusive já estava bem familiarizado com ela. Tínhamos recebido recados a serem passados a Ramon, o líder da região. Pedidos para serem entregues como encomendas. Era sombrio, mas eu aprendia com cautela e obstinação – o tipo de coisa que você só tem quando é jovem.

Roberto não era um homem alto e certamente não era ninguém impressionante fisicamente. Não era muito feio ou muito bonito e nem causava tanto medo. A real é que o cara era gente fina. Havia andado muito tempo com ele e aprendido tudo que sei hoje. Entre elas, estava o fato de que Roberto conhecia muita, mas muita gente. E gostava de menos da metade delas.

Acima de tudo, o que faziam todos temê-lo não era sua aparência ou maneira de falar, mas sim o terno luxuoso que era o símbolo do trabalho que ele tinha a oferecer.

Óculos escuros escondiam seus olhos sinceros e eu viria a aprender com ele que para um membro da máfia, uma palavra significava duas, e um olhar, a sentença.

Muito dificilmente Roberto tirava os óculos, e isso acontecia nas mais raras vezes que se encontrava com um amigo em que pudesse ser franco. Caso o contrário, fazia-o quando queria usar de impressionismo para àqueles que não andavam na linha.

Servia como um recado: “Ou você anda direito daqui pra frente, ou algo de muito ruim vai acontecer a você e sua família”.

Naquela época, Roberto nunca tirou os óculos para falar comigo. E eu também não vestia um terno, como ele. Eu era apenas um garoto, entusiasmado e quieto. E naquele momento, entediado.

- Vamos enviar uma mensagem ou receber uma cobrança? – voltei a perguntar depois de um tempo.

- Não sei. – entre dentes.

- Não sabe?

Roberto pareceu perder a paciência, então deixei de perguntar. Depois de um tempo ele simplesmente voltou-se pra mim, sublime:

- Fique calmo, garoto. – um trago, suspiro, e fumaça – Vamos apenas tomar uma cerveja, -- consertou. – você, um refrigerante.

Ele tragou o cigarro mais uma vez, o fogo queimando a ponta do papel. Aceitei o fato calado e continuei a seguir com ele pela rua defeituosa.

Havíamos parado de frente a um bar, nada de impressionante. Um bar, um boteco; como qualquer outro que havia pela cidade decadente de Cabo Seguro. De repente, ao entrarmos, fomos açoitados por uma porção de cumprimentos alheios:

- Ei, Roberto! – erguiam mãos de muitos.

- Fala, grande!

- Roberto... – um meneio de cabeça ou dois.

Rostos distintos, eu não conhecia ninguém. Roberto acenou para alguns, sorriu para outros e parou para cumprimentar e passar rápidas informações para certos específicos.

- Vêm. – disse ele. Eu fui.

Caminhamos pela lateral do boteco, uma passarela com uma das paredes abertas, dando visão para a rua de fora. Ele cumprimentou o dono do lugar, um velho humilde, e depois perguntou por alguém especifico que não demorou para ser encontrado. Fomos então até o corredor espaçoso, havia cadeiras e o parapeito que dava de frente pra rua servia de mesa.

Lá estava um homem, sentado, quarenta e poucos anos, olhos azuis e cabelos claros e ralos. Não consegui distinguir se eram loiros ou brancos, mas claramente dava pra ver seu couro cabeludo.

- Hah! Aí está o homem. Roberto! – disse o estranho enquanto falava no celular. Virou-se para mim. -- E o novo aprendiz dele.

- Eu... –

- Aluno. – corrigiu Roberto, me cortando. – Aluno.

- Que seja. – risos.

Tempo.

- Não, sua vagabunda! Eu não quero que você faça isso... Não, você... Você não está entendendo!
Roberto puxou uma cadeira, sentou-se do lado do homem, estalou as costas.

Fiquei de pé, observando o homem no telefone, intrigado com o assunto e os palavrões.

- Presta atenção, cachorra. Você ainda é minha filha, tá me ouvindo? Se você sequer ousar sair com esse cara de novo eu te arrebento, você ta me ouvindo?!

Eu estava assustado, tentando entender, mas Roberto pareceu não ligar, e até  deixou uma risada leve sair. Parecia estar em casa – e estava mesmo.

- Sim. Isso. Tá... – afastando o celular do ouvido. – Beijos pra você também. Fica com Deus, meu amor. – desligou.

Roberto ficou o olhando por de trás dos óculos escuros.

- Ah, cara... – um suspiro longo. – Sabe como é, não é?

- Problemas familiares? – Roberto perguntou.

- Isso – bufou. – Isso mesmo, nada que não dê pra resolver.

- Não. – riu Roberto. – Eu não entendo, você sabe disso. A única família que eu conheço é a máfia.

- É, eu sei disso. – ele deu um largo sorriso mostrando os dentes amarelos de cigarro. A carne em volta dos seus olhos apertava-lhe a visão quando sorria.

Por um instante, silêncio e sorrisos.

- Quem é o garoto? – perguntou pra Roberto. – Quem é você garoto? – virando-se pra mim. – É novo no pedaço não é? Prazer, Raú... – estendendo a mão.

- Prazer. – cumprimentei.

- Qual o seu nome, garoto? – deu uma risada sem humor, insatisfeito com o meu apenas “prazer”.

- Qual é, Raú – interrompeu Roberto, quando eu já estava para abrir a boca e responder meu nome.

O homem sorriu.

- Sabe bem que ele não tem permissão de se apresentar. – um olhar severo pra mim visível por de trás dos óculos. – Não ainda.

Engoli seco, quase um erro grave.

- É claro. – disse o tal Raú, todo sorrisos, um molejo no corpo. – Me desculpe.

Pausa. Um tempo pra respirar.

- Ô! Samir, cadê a molhada, porra?!

O homem bateu palmas pro alto, chamando atenção.

Rápido, Samir veio até nós com uma garrafa fria de Guness. Colocou-a sobre o parapeito. Ali já havia outra garrafa, mas pela metade. O dono do bar me perguntou o que eu queria, sofri vigília severa de um olhar de Roberto enquanto eu gaguejava por uma lata de coca-cola.

- Ah! – Raú sibilou algo enquanto enchia os copos dele e de meu patrão. Líquido escuro e espumoso enchendo pouco a pouco o vidro grosso

- Poucas coisas no mundo são tão poéticas que uma espuma de Guness num caneco pint glass. Não concorda?

- Concordo.

- Saúde.

- Saúde.

Brindaram.

Pausa para beber.

- Mas diz aí, Roberto. – começando de novo. – Veio até aqui por que, hã? Não te devo nada parceiro...
- Não vim por trabalho, Raú. Vim por amizade.

O outro riu.

- Posso vir como amigo; não posso? Sentir saudades. Querer te visitar.

- Me poupe de sua viadagem, certo?

- Certo. – riu.

Eu observando, tomava o refrigerante fingindo que era algo alcoólico. O gelo trincando e ardendo meus dentes. Achei-me um idiota.

Uma menina não mais velha que eu passou na rua naquele instante. Shorts jeans curto, blusa verde clara, acentuando-lhe o corpo evoluído e atraente. Para um garoto como eu, era perfeita. Para um garoto como eu.

- Olha isso... – comentou Raú, apertando a visão para a garota de costas, a carne envolta dos olhos crescendo. – É desse tipo de mulher que eu preciso...

Roberto deu uma risada larga e gostosa, eu engasguei com o comentário.

- Dezessete anos, Roberto. Dezessete anos! E já estão assim, perfeitas, madurinhas.

Eu quis vomitar.

- Ah... Sorte a Deus de poder ainda desfrutar esse tipo de fruta, as mais novas é que são as boas. Não concorda, Roberto? – lambeu os lábios, limpando a espuma da cerveja.

- Minha mulher semana passada reclamou da viagem que fiz para o interior. Não quis ir. – Raú deu de ombros. – Sorte pra mim. – risada escancarada, e depois virou o copo de uma vez só. – Aproveitei a farra.
Roberto deu uma risada forte achando graça daquilo, eu me sentia enojado.

- Você não muda. – disse Roberto.

- Não mesmo... Escuta, preciso te fazer um pedido. Sei que é meu amigo. É meu amigo, não é? Sei que ainda trabalha pro Ramon e sei que tu ainda têm aqueles caras todos na tua cola, to certo?

- É.

- Então, cara, to querendo dar um presente pra minha filha, sabe qual é? Mas tem que ser um presente bonito. Tava querendo dar pra ela aquelas caixinhas adornadas, sabe? Aquelas que você abre e coloca o que quer dentro? Bijuteria, colar, brinco, piercings. O que for. Sabe qual é?

- Sei. – Roberto riu.

- Quanto é que sai? Sabe mais ou menos?

- Uns vinte a trinta. Não muito. Pouca coisa na verdade.

- Porra, tem como tu me ver uma dessas, cara? Tava querendo dar pra ela. Mesmo. De ouro e prata, adornada.

- Tem sim. – Roberto tirou os óculos, colocou sobre o parapeito. – Se você pagar... – bebeu.

- É claro que pago, Roberto. Ô! Que tipo de amigo você pensa que sou, caramba. – resmungando. 
Bebendo.
- Qual o trampo? – disse Roberto de repente, franco.

- É um moleque aí. – disse Raú, cuspindo na janela. – Tá me tirando a paciência. E antes fosse só isso. Tá querendo tirar a inocência da minha filha, tá entendendo?

- Sei.

- É sério, Roberto. O moleque é um filho da puta! Quero resolver essa porra, caralho.

- Era sobre isso que estava falando no celular? Era com ela que você tava falando?

- Era. – secou o copo. – Isso tá tirando minha paciência, cara. Resolve essa pra mim. De amigo, o que acha?

Fiquei olhando. Não estava mais incrédulo, eu estava indignado.

- Tudo bem. – pro meu espanto. – Quebro essa pra você.

- Pô, Roberto, muito obrigado cara, tu é meu amigo mesmo, heim. Tu sabe, né, sou teu melhor amigo.

Roberto riu.

- Eu sei cara, eu sei. Fica tranqüilo.

Os dois sorriram, encheram mais uns canecos. Eu estava completamente idiota – mas vim a aprender mais pra frente o que significava tudo aquilo. Chamava-se
máfia.

Era assim que as coisas funcionavam. Troca de interesses. Roberto conhecia gente importante, tinha contatos. E, Raú era um pedófilo mefítico
, que apenas tinha bons amigos. Não consegui passar da metade da lata de coca-cola.

- Mas diz aí, Raú. – Roberto perguntou. – Quantos anos já têm a sua filha?


- Dezesseis – respondeu ele, com um orgulho singelo. – Dezesseis anos e um corpo lindo, Roberto. Você tem que ver. Qualquer dia desses eu trago ela aqui pra você dar uma olhada. São os novos anos, cara. As garotas estão crescendo rápido, ficando mais espertas. A fruta já cresce bem mais madura, entende?


- Entendo. – Roberto rindo de canto, balançando a cabeça negativamente.


- Mas é sério, Roberto. Quebra essa pra mim, e não se esquece da caixinha de presente. Mas tem que ser 
bonita, heim. A melhor. Quero presentear a minha filha. A mais linda.

Roberto fez que sim com a cabeça, deu-lhe ao homem um bilhete e se retirou. Fui sem ter o que falar. 
Depois de um momento, ele decidiu puxar conversa.

- Quer dizer algo, garoto? – continuou ele, pela estrada esburacada, ascendendo um cigarro.

Fiz que não, mas depois:


- Por quê? – enojado.


Ele deu de ombros.


- Raú é meu amigo. – trago, suspiro. Fumaça.


***


Dez horas da noite naquele mesmo dia eu estava em um galpão. Dessa vez, não só com Roberto, mas com mais oito dos homens que ele comandava.

Raú estava sentado em uma cadeira, no centro do galpão. Estava amarrado a ela, com uma lâmpada amarela, fraca, sobre sua cabeça. Sangue escorria da sua testa, um dos olhos havia inchado e formando uma bola rocha por cima do supercílio.

- Roberto... – ele murmurou.

Havia silêncio por parte de todos.

- Você está num galpão. – respondeu ele de braços cruzados, calmo na explicação. – Estamos longe do movimento, onde ninguém vai poder te ouvir, então não berre. Vai nos poupar tempo e trabalho.
Raú soltou um ganido entre alguns dos dentes quebrados.

- São dez horas da noite. – pausa. – Paolo?

Um dos homens puxou a manga do braço esquerdo e conferiu no rolex.

- Dez e trinta e cinco.

- Certo. Dez e trinta e cinco, pra ser mais exato.

Raú tentou erguer o corpo, não conseguiu, viu que estava amarrado. Levantou um pouco a cabeça e olhou com o único olho que lhe restava. Visão embaçada, notou Roberto de frente pra ele, braços cruzados, impassível. Os oito homens fazendo a roda em volta dos dois.

Um tanto distante dali, estava eu, num canto escuro da sala. Perto de mim, havia alguns barris de gasolina empoleirados, esperando por sua vez na cena.

Senti um asco de nojo ao ver o homem me olhando. Sabia que ele não podia me ver com toda aquela escuridão, mas não evitei em desviar o olhar.

- Já é a quarta vez que estou lhe explicando isso. – disse Roberto, o outro tomou um susto. – As outras vezes você não cooperou muito e meus homens foram obrigados a lhe espancar até que desmaiasse.
Raú engoliu seco.

- Espero não ter de haver uma quinta. Você demora pra acordar, mesmo à ponta pés.

Não havia funcionado, Raú berrou em desespero e novamente foi agarrado e sido vítima de golpes de todos que estavam naquela sala, exceto eu e Roberto. Dessa vez Raú não desmaiou, mas ficara gaguejando e tossindo sangue por um longo tempo.

- Por quê? – vomitando. – Ro-Roberto...

- Você deve demais, Raú.

Tosse. Tosse.

- É porque transo com minha própria filha? – cuspindo dentes, olhar tonto, parecia não ter ouvido Roberto. – Eu juro que a trato bem, juro que minha mulher –

- Você deve demais, Raú. – interrompeu-o.

Quieto.

- Você sabe o que acontece com quem deve demais – inclinou o corpo para olhar a face desmoronada do amigo. – Não sabe?

Eu não soube, e nem sei até hoje o porquê, mas senti pena daquele homem. Durante um minuto senti muita pena. Mas passou.

- Você era meu amigo... – gaguejando. – Roberto...

Os oito se entre olharam. Roberto em sua mesma feição, por de trás dos óculos escuros.

- Perdão! – exasperou-se, consertando o erro que havia dito. – Ainda é! Você ainda é meu melhor amigo, Roberto! – disse Raú, quase aos berros.

Ele se ergueu, descruzou os braços. Procurou nos bolsos o plástico com o cigarro e puxou um maço, colocando na boca. Puxou o isqueiro, pude ver que foi naquele exato momento que Raú percebeu estar banhado por algum liquido estranho e pegajoso.

Gasolina.

- Roberto! – desespero.

- Vou te contar uma história, Raú. – paciente. – Não, na verdade é uma fábula.

- Roberto, eu pago, eu juro. Juro por Deus, por minha mulher, eu te pago! – gaguejando.

- Gosta de fábulas, Raú?

- Juro por minha filha, pelo amor de Nossa Senhora! Eu juro, Roberto, por favor!

Ascendeu o cigarro, deu uma tragada forte.

- É a história do lobo e do cordeiro. – falou sem sequer expelir um pouco da fumaça. Uma espécie de habilidade de bons fumantes.

Raú abaixou a cabeça, gaguejando, tossindo, murmurando.

- Eu pago... eu pago... juro que pago.... – chorando.

- É mais ou menos assim. – guardando o isqueiro no bolso, estalou as costas, cruzou os braços, tomando cuidado para não queimar o terno impecável.

- Havia um cordeiro na beira de um rio, ele bebia água, era um dia quente, sabe? Sede. – movimento simples com as mãos. – Foi então que apareceu um lobo.

Eu não entendia o porquê daquilo, como não entendia muitas coisas. Mas o fato é que lá estava eu, o homem gaguejando, os membros mais perigosos da máfia reunidos dentro de um galpão, e Roberto, contando uma história.

- Você sabe que em fábulas os animais falam, não sabe Raú? – continuou ele.

O homem tremia o corpo, balbuciando impropérios, desgraçando a situação.

- NÃO SABE, PORRA?!

- Sim! – berrou de volta em desespero, catarro entalando a garganta, saindo pelas narinas.

- Pois bem.

Um novo trago.

- O lobo havia se aproximado do cordeiro, foi então quando começou a falar:

“Você está sujando minha água. Esse rio há anos é limpo e puro, e você está o sujando”.

- O cordeiro então, muito sabiamente disse que era impossível, pois já há muito havia bebido naquele rio, e nunca tinha ouvido falar de que ele pertencia a um lobo.

Alguns dos oito homens sorriram.

- O lobo, zangado pela resposta, -- continuou Roberto. – tentou explicar:

“A verdade é que eu conheço você. Você me xingou aí um dia desses”, falou o lobo, “Quando eu estava dormindo em uma colina”.

- Todavia, mais uma vez, o cordeiro respondeu:

“Não pode ter sido eu. Sou muito novo, e quase não saio do meu lar, a não ser para beber água do rio.”, o lobo voltou a se zangar novamente e tentou mais uma investida:

“Então foi seu irmão!”

Naquele momento, todos do galpão pareciam prestar absoluta atenção na história, inclusive Raú, que mesmo de cabeça baixa, parara de balbuciar.

- Então... – disse Roberto. – Foi o momento que o cordeiro estranhou aquela atitude, e tentou explicar mais uma vez:

“Não pode ser verdade, seu lobo. Sou filho único! Não tenho irmãos!”.

- Por fim, o lobo cansado de tentar arranjar boas desculpas, ameaçou dizer que fora seu pai. Mas o cordeiro voltou a dizer:

“Impossível. Sou órfão. Não conheço meu pai”.

Silêncio, como se Roberto esperasse uma pergunta ousada do ouvinte da história. Raú teve um momento de vislumbre. Engoliu seco, ergueu a cabeça para olhar seu anfitrião.

- Sabe o que aconteceu, Raú?

Um engasgar.

- O lobo cansou. Cansou de uma vez, e devorou o cordeiro. Tudo em um movimento só. Tão rápido que nunca ninguém soube que ele existia. – jogou o cigarro no chão, ainda aceso. – Nada.

Raú arregalou os olhos.

- A moral da história, Raú. Quer saber o moral da história?

- Roberto...!

Não pude ver, Roberto estava de costas pra mim, mas acredito num sorriso em seus lábios.

Raú abriu a boca, mas som algum saía-lhe.

- Contra a força não há argumento. Amigo.

Um berro antecipado, Roberto virou de costas e fez um sinal simples. Um pequeno movimento enquanto vinha em minha direção.

Os homens puxaram armas de calibres pequenos, uma sequência de luz e estouros começou. Descarregaram todos os tiros contra o corpo do homem amarrado. Ele estremeceu com força a cada disparo e depois, espasmos.

Corpo mole.

Não demorou muita para que o pedaço de carne esburacada começasse a incendiar e formar uma enorme tocha que ia queimando (até explodir) em poucos segundos.

Roberto vinha em minha direção. Eu estava pasmo.

Ele tirou os óculos escuros, fitando meus olhos. De homem pra homem – não sei se como amigo, ou presa.

- Você pode escolher ser o cordeiro ou o lobo, agora. – disse ele. – Qual quer ser, garoto?

Sem pensar:

- O lobo.

- Boa escolha. – um sorriso largo, um novo cigarro entre os dedos. Eu estava vivo.

- Bem vindo à Máfia, Lobo.
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Christian Vinharski