segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Conto - Um Visitante Inesperado

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Estavam todos parados, olhares de medo, no convés do navio. Recuando meio que em arco. Todos, recusando-se a aproximar-se da figura destacada que surgira há pouco tempo no bico da proa do navio.

Era uma criança. Tão baixa quanto a cintura de qualquer homem que estava por ali. Tinha o corpo marcado, raquítico. Debulhado sobre feridas impiedosas. Sua pele era branca como o cal, e seus olhos tão negros quanto o piche. No topo de sua cabeça, escorria rijo uma continuidade de cabelos emaranhados e duros. Entrelaçados como as cordas do navio. Uma camada de sujeira recobria-lhe todos os fios, dando além do aspecto sujo, uma nojeira irregular.

Uma das tranças da criança caía sobre o rosto, despejando um pequeno pedaço do fio para dentro do globo branco. Os homens sentiam agonia de ver a cena, e vários piscaram e cutucaram a vista por impulso.

A criança, que até tal momento estava estacada ali na ponta do navio, soou um ganido, logo após, assoprando forte com os lábios carnudos; mais brancos que sua pele pálida. O esbranquiçar de sua boca sobresaía sobre todo o branco restante do corpo.

Os homens pareceram um pouco menos perturbados ao ver o fio de cabelo saltar dos olhos da criança com o sopro que ela deu.

Mas ainda mantinham-se apreensivos, com a presença perturbadora da entidade.
Um homem deu o primeiro passo trêmulo. Logo, o segundo; e o terceiro; todo calculado.

-- Aqui – o mandrião disse – pegue.

Estendeu a mão com migalhas de um pão já duro que amanhecera vários dias na cozinha do navio. O pão quase não se mantinha nas mãos do marujo, que, tremendo, deixava com que os restos da migalha se juntassem à poça de água preta incrustada no chão.

A criança estacada sem ensaiar um movimento sequer, permaneceu imóvel.

-- É tudo o que temos – gaguejou o homem – Temos muito pouco; e o deste pouco é apenas o sobrado do dia de ontem – ensaiou mais uma explicação. – Estamos sem mais reservas. Por favor, pegue.

A criança continuou olhando. Não sabia-se, se, para o pão, para o homem, ou para qualquer outro lugar. Os olhos escuros permaneciam visualizando o espaço em volta, sem se mover. Como se fossem cegos.

Seu pescoço então mexeu-se, pendendo de súbito a cabeça para um lado, e fazendo um estalo ardío. Os homens, ali acumulados no convés, deram um salto largo para trás murmurando de susto. O mandrião mais a frente, recuou tropessante, e caiu no chão de madeira, derramando o pão inteiro. Estremeceu, querendo engatinhar para longe dali.

A criança albina ergueu a cabeça com o corpo estremecendo e convulsionando-se, até inclinar os olhos para o marujo. Passou o olhar como se analisasse cada homem dali.

Parou.

Silêncio.

-- Criança... – tentou novamente o homem.

Nada.

Os marinheiros não sabiam mais se deviam recuar ou avançar. Alguns já mormuravam para outros, balbuciando xingamentos. Outros, rezavam para todos os deuses, diante daquela figura impudica.

-- Joguemos a criança no mar... – praguejou um dos homens ao fundo.

-- Não. Prendamos ela no porão. – disse outro – Pode nos ser útil caso encontremos algum vendedor de escravos na próxima cidade. – riu.

Ouvindo o murmurar dos mandriões que se intensificavam com as novas idéias e, outros, desaprovamentos, o marujo mais a frente tomou de iniciativa. Agarrou o pão do chão, puxando junto ao miolo,um pedaço de sujeira misturada.

Levantou-se rapidamente tomado por coragem, a ingenuidade dos parceiros, e avançou até a criança, já esquecido do medo, ou tentando esquecer.

Agarrou sua mão quase num puxão e entregou-lhe o pedaço sujo de comida à força.
-- Tome! – gritou, exasperando-se.

Um silêncio súbito logo após. Todos tomaram por decisão ficarem quietos, enquanto o homem digeria a idéia do que acabara de fazer. Ensaiou um pequeno passo pra trás, temendo e já prevendo ter feito a coisa errada.

A criança, mais uma vez, não se moveu.

-- Por que diabos não estão fazendo seus serviços, bandos de cães preguiçosos – veio de súbito então uma voz altiva do fundo do convés. Aproximando-se da aglomeração e cortando a quantidade de mandriões parados por ali.

Do meio dos piratas, surgiu um homem alto, de ombros largos e cicatrizes recentes no rosto. Procurou o nada com o olhar, até encontrar o mandrião com a criança pálida mais a frente.

-- Que demônio é esse? – espantou-se.

-- Senhor... – o homem iniciou o diálogo, olhando para o capitão, mas ao fazê-lo foi rapidamente interrompido.

A criança largou as migalhas de pão ao vento e arqueou as sobrancelhas, arregalando os olhos, agora brancos.

Projetando os dentes serrilhados para fora da boca, agarrou o braço do homem e lhe penetrou forte os dentes em sua carne, jorrando um chafariz de sangue logo na primeira mordida.

-- Aaaaaaarrrrrghh!!! –o homem esganiçou de dor. A criança preparava-se para a segunda fincada. Mas o capitão agiu rápido.

Acometido pela cena, levou a mão para trás das costas, sem cerimônias, e puxou em repelão uma pistola prateada, mirando-a contra o crânio da criança.

Ouviu-se o som do disparo, e a bala voou no espaço acertando a cabeça da entidade. A criança voou pra trás, cambaleante. Bateu com as pernas na manjada da proa e caiu nas águas. Morta.

Os homens gritaram de susto; como mulheres.

-- O que o senhor fez?! – gritou o homem, balbuciando as palavras ainda em dor, e quase esquecendo-se da quantidade abundante de sangue escorrendo ao chão.

-- Matei a vadia.

-- O senhor matou uma entidade sagrada! Capitão, -- gaguejou exasperante – aquilo era um deus... – concertou – uma deusa menor!

-- Não. – impaciente – Aquilo agora é um morto – disse sem alterar a voz – E os mortos não são porra nenhuma. Vamos, voltem aos seus afazeres chacais! – gritou o capitão -- E não me chamem de novo se tiverem uma dessas em seus cintos para resolver o problema. – disse mostrando a pistola.

O comandante girou nos calcanhares para retirar-se do recinto enquanto o restante ainda permaneciam incrédulos.

A tripulação, ainda espalhada, assimilando a ordem dos acontecimentos.

-- Vocês ouviram – disse um dos marujos – Todos de volta ao trabalho!

Cada homem foi se retirando para os cantos destacados do navio, indo terminar afazeres interrompidos pela visita inesperada.

Todos, ainda abalados e incrédulos.

O comandante Imediato permanecia no mesmo lugar, com o braço ferido, esticado em direção ao chão, expelindo escarlate enquanto a outra mão tentava inutilmente paralisar a hemorragia do rasgo em sua pele. Dois homens aproximaram-se às pressas – um segurando seu ombro, e o outro carregando consigo um pedaço de pano que um dia já fora branco.

-- Para estancar a ferida. – explicou. – Rápido, deixe-me ver seu braço.
Enrolaram-lhe a faixa em volta da fenda que estava aberta na carne do homem, e prenderam-na fortemente.

-- Venha – disse um deles. – Somente isso não bastará para estancar o ferimento.

-- Ele a matou. – balbuciou o Imediato. – Ele a matou. Deu um tiro contra a cabeça da entidade. Acertou um deus menor.

Os dois mandriões entreolharam-se, mirando logo em seguida o mar. O homem balbuciante fitava a imensidão azul com os olhos arregalados, em recíproco.

-- O capitão Briggs atirou em uma entidade. – mordeu o lábio inferior e retorceu o corpo para trás. – Seremos amaldiçoados. Nós e esse maldito navio seremos injustamente amaldiçoados

Os tripulantes, em seus afazeres ao redor, tentavam fingir não terem ouvido àquelas palavras; enquanto os outros dois mais próximos, sem saber acreditar ou não, permaneciam calados.

-- Que os deuses estejam conosco. – estufou o peito em dor – Que os deuses nos façam chegar logo à cidade mais próxima. – fechou os olhos.

Resignação. Todos em volta esqueciam do que viram. Esqueciam do que o Imediato havia dito, quando vira a aparição da entidade de súbito, na proa do navio, com os braços estendidos pedindo algo. Todos esqueciam, porque era o mais certo a se fazer – agora, só as ordens do capitão era o que importava, ou se não, haveria um outro corpo vítima de um projeto do comandante. E não seria de um visitante.

O navio começava a cambalear nas ondas da maré. Por sorte, já aproximavam-se de um recife de uma cidade portuária. Altrim.



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Pendendo de cabeça para baixo, o corpo da criança mergulhava pesado como ferro no fundo do oceano – deixando um rastro inter quebrado de sangue, que esvaía de um buraco de bala em sua cabeça.

Sangue.

Vermelho e salgado, como o gosto do mar sufocante ali à toda volta.

Sangue.

Vermelho escarlate. Brilhoso e dançante.

Como os enormes tentáculos que acolheram àquele corpo no fundo do mar – um urro borbulhante.

Nas profundezas da maré.

CRY

Lágrimas caem. Dos meus olhos escorre um elemento chamado saudade. Um choro que nunca tive, e que sinto vir do fundo da minha alma, sobe pelo estômago, queima o peito, rasga a garganta. Explode pra fora.

Sentirei saudades da minha época de escola. Saudades iguais àquela que tenho da minha oitava série, quando tudo acabou e sabia que nunca mais veria as pessoas que vivi em família na rotina do dia a dia.

Passamos a vida inteira reclamando dessa coisa chamada colégio, mas hoje, em fim, vemos o lado bom da coisa. O ponto forte. A escola é o único lugar onde você aprende (querendo ou não) a viver socialmente com tanta força e maturidade.

Você enfrenta perigos distintos, sozinho ou em equipe. Não com o entortar de boca de uma criança, mas sim com a cabeça erguida de um adulto.

Dessa vez, vejo uma diferença.

Há alguns anos atrás, me despedi de amigos que sempre lembrarei – talvez não o nome, mas o rosto e o jeito. Dessa vez, me despeço como um adulto; tendo no coração todas as lembranças preciosas do que fiz e das que infelizmente não o fiz.

Dessa vez é diferente, porque nem tudo precisa ser uma realidade ruim. Escrevo estas traçadas linhas há poucos dias da despedida, para ler todos os dias e me lembrar de aproveitar o máximo até o último segundo. Nem tudo precisa ser uma triste realidade. Ainda haverá dias. Agora tenho contatos, tenho os MSNS que adicionei, os perfis no Orkut. Os seguidores do Twitter. Manterei proximidade como não pude com os amigos das antigas.

Talvez eu marque encontros com alguns; talvez eu veja muitos na rua – espero. Acima de tudo, não é tão triste, porque não será um adeus definitivo. Sei que não.

Será um lembrança definitiva. De um tempo que não voltará mais.

Isso se eu permitir.

Sejamos crianças e adolescentes para sempre, nos nossos corações e no carinho que temos quando estamos com amigos. Sejamos assim.

Maturidade tem mais haver com quantos tipos de experiência você viveu do que quantos aniversários você fez. Tenha altivez de adulto, e o coração que tem hoje. Aposto que não é tão ruim assim.

Vamos viver, pessoal. Viver de tal forma como estou vivendo agora, enquanto escrevo este texto. Dando o melhor da minha alma para escrever, me preocupando com sentimentos e não com coerência. Suficientemente para que nunca este texto tenha uma revisão sequer.

Vamos viver. Quarta. Quinta. Sexta.

Os sábados e domingos também. E as recuperações, claro!

E, esperemos. Esperemos até o dia final, onde nos reuniremos mais uma última vez na formatura, trocando sorrisos, lágrimas e risadas.

Ao descobrir que não é o fim, e sim, somente o início.