segunda-feira, 28 de maio de 2012

A Igreja do Bem e do Mal


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A IGREJA DO BEM E DO MAL



Chegou uma carroça puxada por bois. A carga macabra era composta por mulheres de todas as idades. Velhas, moças e crianças. O povo aplaudia.

- Um momento de silêncio, em nome de Deus, por favor. – gritou o padre do alto do palanque.

As pessoas iam parando de berrar aos poucos, um burburinho tomou conta do povo que ia se acotovelando brigando por espaço, uma busca incessante por uma visão melhor do espetáculo que iria começar.

- Hereges! – gritou um homem.

O burburinho se intensificou até se transformar em berros.

Prostrado ali, longe da visão de muitas pessoas, Daniel olhava para o céu, analisando quanto tempo levaria. O sol ia se afastando e tudo indicava que a noite de lua seria insuficiente para iluminar sua volta para casa.

Daniel morava longe. Era a primeira vez que havia entrado naquele vilarejo e o fizera por ordem de seu mestre:

- Bruxos serão queimados daqui a cinco noites – havia dito ele – Quero você por lá, é uma cerimônia que todos devemos ver. Principalmente gente como nós.

Daniel era um bruxo – aprendiz de um. Novo e inexperiente, nunca havia visto em sua vida uma sentença a hereges. Embora soubesse que mulheres eram caçadas e queimadas na fogueira da Inquisição, Daniel nunca havia visto cerimônia como esta.

- Sim, sim – exclamou o padre ao povo, fazendo gestos com as mãos, pedindo silêncio a plebe. – São hereges, bruxas. Cuspiram na cruz, invocaram demônios, talvez tenham condenado toda nossa vila perante Deus.

As pessoas vociferavam.

- Mas ainda assim haverá um julgamento perante os olhos Dele.—continuou o padre. – E vocês são testemunhas, todos nós somos.

Daniel olhou para o céu novamente, e havia um motivo maior a fazê-lo. Fitou de longe as crianças que seriam julgadas e ponderou que tudo àquilo começasse logo. Sabia que enquanto a sentença fosse a tarde, seria mais branda: enforcamento.

Caso contrário, se a noite caísse e o céu vestisse preto, as crianças iriam ter de partilhar a dor candente da fogueira, o mesmo que aconteceria às mulheres mais velhas.

A Igreja era crente do principio que toda bruxa deveria ser julgada sob o escuro, mas purificada com a luz.

Daniel sonhara uma vez que era queimado vivo – mais que isso, era um presságio. O pouco dos dons que as pessoas normais ainda partilhavam dos bruxos.

Lembrou consigo mesmo, da ardente dor que era ser consumido pelo calor e pela fumaça. Talvez fosse a pior forma de morrer.

- Sem dúvidas que é. – disse uma voz em suas costas.

Daniel se virou e viu seu mestre, um homem franzino de cabelo escuro e pele clara. Respondia apenas pela alcunha de “bruxo” e nome mais algum.

- Morrer na fogueira – continuou, como se pudesse ler a mente do aprendiz. – Certamente é a forma mais dolorosa de se morrer.

Daniel o ficou observando.

- Mas não para um herege. – disse ele.

- Como? – perguntou Daniel.

A carroça chegou perto do cadafalso e os soldados abriram as grades por de trás dela. Havia uma enorme cortina vermelha em volta do palanque, como num circo ou teatro. A Inquisição era um espetáculo a parte.

 - Há muitos instrumentos cruéis para se torturar hereges. Bruxas em especial – disse o mestre para o aluno. – Você ficaria impressionado com a criatividade e engenho para nos torturar, rapaz.

As bruxas foram empurradas para subir ao palanque de madeira. Os xingamentos e os berros se intensificaram. Frutas e repolhos podres foram jogados contra o rosto delas e das crianças. Não havia perdão para heresia.

- Elas sofreram torturas severas na prisão daqueles padres. – analisou Daniel.

- Sem sombra de dúvidas. Vê aqueles buracos na garganta e no peito? – o bruxo apontou com o queixo. – Chama-se gargantilha do herege, um instrumento que prendem em seu pescoço impedindo movimentos bruscos, inclusive falar ou respirar.
Daniel recuou o rosto e mordeu o lábio inferior como se sentisse dor.

- Não se engane, rapaz. Você nem sequer viu um empalamento. Isso não é nada. – riu sem graça alguma.

Em seguida, houve um discurso longo e demorado, a noite vinha chegando. As crianças foram enforcadas, as pessoas bradaram o nome de Deus.

As preparações foram feitas para o espetáculo, era hora da fogueira. As cortinas se abriram.

***

Quando saíram da praça e se embrenharam num beco, Daniel correu à frente sem fôlego pelo terror que assistira.

- Isso é Deus? – questionou horrorizado depois de toda a tortura.

- Não – disse o bruxo. – Isto é Um Deus.

- Deus. Isto é um Deus...

O bruxo fez que sim.

- Prefiro morrer sem ele, então. – foi um trincar de dentes, uma mistura de ódio e pavor.

O bruxo balançou a cabeça.

- Não se pode julgar o que as pessoas fazem em nome de seu Deus – disse o bruxo, tentando explicar. – Não há como apontar as verdadeiras intenções de um Deus pelas ações de seus seguidores e era isso que eu –

- Como é? – interrompeu Daniel abruptamente. – Podemos sim e devemos! Milhares de pessoas estão morrendo em nome Dele. A Igreja é uma Ordem como todas as outras, inclusive como a nossa. Ela responde pelos atos de seus membros. O que é Deus sem seus servos? Ele responde pelos atos deles, sim!

- Não é tão simples.

- E por que não? – houve um momento de resignação por parte do outro. – Se esse é o caso, que Ele responda contra seus fiéis, então. Que Ele desça e diga a todos que estão errados. Isso não é tão difícil, Ele é Deus!

- Não é tão simples. – repetiu o outro.

- Por quê?

Silêncio.

- Por quê?!

- Deus está preso. – disse o bruxo.

Pararam por um momento.

- O quê? Como é?

- Deus está preso, – explicou o bruxo. – Está preso no mundo dele. Assim como nós estamos no nosso.

O outro raciocinou.

- Só há uma forma de encontrá-lo. – disse o bruxo.

- Morrendo. – disse Daniel, elaborando cada palavra.

O bruxo ergueu o rosto.

 – Morremos para passar para o outro lado e ver Deus no mundo dele... – disse Daniel.

O outro balançou a cabeça. O rapaz ergueu uma sobrancelha indagando se estava errado.

- Ou será que é Ele que morre? – perguntou o bruxo – Para vir pra cá.

O rapaz deixou o queixo pender. Uma centelha de curiosidade faiscou-lhe dos olhos.

- Deus já veio para cá?! – exaltou na pergunta. Então corrigiu: – Algum Deus, já veio pro nosso mundo?

O bruxo deixou surgir um sorriso de canto da boca, satisfeito com o aprendiz.

- Mas é claro.

Daniel se entusiasmou.

- Já viu algum?!

- Sim. Este é o significado de ser um bruxo, rapaz. Aprender como vê-los, e vê-los de fato, todos os dias.

O rapaz ergueu o corpo, como se já pudesse pressentir o dia em que enxergaria o primeiro Deus. Já imaginava como seria a forma de um; que perguntas faria se O visse.
- Eu verei um deles, algum dia? – perguntou.

- Certamente que sim.

- Onde posso encontrá-los?! – quase um grito.

Silêncio.

O bruxo cruzou os braços. Tomou por postura rígida e ergueu o queixo, olhando para o garoto de cima. Seriedade de professor prestes a ensinar algo importante; um cuidado firme – as mãos de um médico prestes a cortar artéria com um bisturi.

- Olhe ao redor.

O garoto inspirou fundo e o fez. Virou o rosto com cautela para a esquerda e depois para a direita. O beco escuro e sujo continuava lá e mais ninguém.

- Não vejo nada além de mim e você. – disse.

- Olhe de novo. – falou o bruxo. – Com mais cuidado dessa vez.

O rapaz ficou mirando a seriedade de seu professor. Voltou a fazer o que lhe fora ordenado. Olhou ao redor com cautela observando cada buraco no chão, cada tijolo velho nas paredes e todos os cantos escuros do beco. Não via nada.

Por um instante pensou que ainda não estivesse pronto. A capacidade necessária que seu mestre obtinha para enxergar as formas divinas dos possíveis deuses na Terra talvez ainda não o tivesse agraciado. Mas ouviu de súbito um ruído, tal qual houvesse alguém corrido assustado para um canto que não conseguia enxergar.

Sem pensar duas vezes o rapaz pegou impulso e correu á largas pisadas pelos becos que serpenteavam a cidade.

Ao chegar no final do caminho, viu que perseguia na verdade um menino. Um mendigo que saia da escuridão, indo para as ruas principais do vilarejo.

O rapaz viu as carroças de palha e de estrume sendo puxadas e noutro lado a praça principal, onde havia sido feito o enforcamento e a fogueira.

Plebeus, monges, mendigos e vassalos se juntavam – as mesmas pessoas que horas atrás haviam se agrupado para assistir às torturas e morte que os nobres presenteavam. Daniel ficou estacado.

Poucos segundos depois o bruxo aproximou-se.

- Achou? – disse ele.

- Não – falou o rapaz, desapontado. – Eu me enganei.

O bruxo deixou um leve sorriso escapar.

- Não, você não se enganou.

Daniel o fitou. O bruxo voltou-se para o aluno surpreso.

- Onde estão os deuses? – perguntou.

- Estão ali. – disse o bruxo, apontando com a cabeça para as pessoas agrupadas. – Ali também. Alguns estão naquele canto lá. Estão por toda parte.

- Eles não são deuses – murmurou Daniel. – São pessoas, piores que animais. Lavradores de terra, vassalos, estupradores, bandidos. Nenhum deus.

- Você está enganado, meu rapaz. – disse o bruxo. Daniel o olhou de imediato. – Todos eles são os deuses para quem eles mesmos oram. Deus veio parar nestas terras, e está preso dentro de todos nós.

Tempo.

- Se isso é verdade, então quem responde às preces deles quando oram? – perguntou Daniel, indignado.

- Eles mesmos, oras.

- E como poderiam? – disse. – Se não há deus nenhum que possa atendê-los?!

- Mas eles são, caro Daniel. – o bruxo sorriu. – Quem pede por justiça? Quem ora aos deuses pela morte dos bandidos, estupradores e ladrões?

Daniel não disse nada.

- E quem atende suas preces, Daniel? – levantou uma sobrancelha. – Quem é o carrasco que põem o fogo das fogueiras e puxa a alavanca da forca?

Tempo.

- Somos nós mesmos, rapaz. Não é deus que desce nas nossas terras e enforca, tortura e queima. Somos nós mesmos. Nós pedimos, nós fazemos.

Daniel engoliu em seco.

- E isso é uma magia poderosa, não? – disse o bruxo em um sorriso sombrio e espantoso. – Nós mesmos fazemos os milagres que pedimos.

- Isso é horrível! Deus não existe –

- Está enganado – interrompeu-o com seriedade súbita. – Ele existe; Eles existem. Estão por toda parte. Apenas são poucos os que conseguem enxergar isso.

Silêncio. Daniel sorveu a ideia como um cubo de gelo derretendo em chapa quente.

- Isso é horrível. – disse ele.

- Não, Daniel. É pior. – a resposta veio de um olhar severo. – Deus não está morto, ele está entre a gente, e é cruel.

- Antes fosse só isso, mas ele está entre nós e quer dizer que já não está mais no lugar de onde veio.

Daniel o fitou fundo. O bruxo ergueu o rosto vendo o céu se fechar em escuridão.

- Se ele veio pra cá, para onde iremos quando morrermos?

Cortinas.


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