Naquela
silenciosa noite, Simion grunhiu entre dentes quando sentiu a fisgada no peito
mais uma vez. Parou de caminhar pelo extenso corredor da casa de madeira e
tombou o corpo trêmulo para o lado, apoiando-se numa das paredes e ficando
próximo à janela que deixava a luz prateada entrar.
— Sempre na lua cheia — reclamou entre
dentes — Como pude me esquecer?
Simion se
perguntou o por que daquilo tudo, e o propósito de seu sofrimento. Nenhum homem
devia sofrer por tomar decisões como as dele. Talvez seu povo fosse de fato
amaldiçoado; os elfos púrpuras consideravam-se puros e perfeitos, primogênitos
entre seus irmãos raciais; mas que outro elfo no mundo era torturado pelo
simples fato de amar?
No meio de
seus devaneios, sentiu de novo a estocada em seu peito, mais forte e voraz. Estremeceu
uma das pernas caindo com os joelhos ao chão, e resistiu à dor com os punhos
serrilhados, enterrando as unhas na palma da mão. Quando amenizou, voltou a se
levantar e esquadrinhou o corredor da casa sob o protestar do chão de madeira rangendo.
Levou uma eternidade até ganhar a porta dupla de carvalho escuro no final do
caminho.
Quando a
abriu, viu Hiraeth sentada em um cama grande de frente para a porta, com as pernas
cruzadas e um de seus braços apoiados sobre a coxa do vestido branco, segurando
algo que brilhava intenso, mas abafado pelas duas mãos. Os longos cabelos
vermelhos de fogo atenuavam a beleza invejável, e fez com que Simion pensasse
mais uma vez que não tinha como saber quando a conhecera: jamais em sonho alguém
deduziria que ela fosse uma bruxa.
— Eu sei que
dói — a mulher murmurou enquanto fitava os olhos amendoados ao elfo — Por isso
o chamei, sei que dói, e sei que é por minha culpa... — àquele tom de voz
culposo, teria feito Simion perdoá-la de imediato, se não fosse a primeira vez
que aquilo acontecia.
— Então pare —
respondeu ele, olhando para ela e o que carregava nas mãos — Basta que você —
Uma dor
estrondosa atravessou seu corpo de súbito e impediu que o elfo continuasse. Suas
costas contorceram e ele caiu ao chão sem fôlego. Hiraeth continuava imóvel,
olhando-o do alto da cama com um semblante que indicava um misto de tristeza e
dó.
— Eu sei, mas
não posso — disse ela complacente —
Somos como um agora, meu bem. Você me
tem, eu o tenho — ela sorriu. — As dores são necessárias às vezes, nos tornam mais
fortes.
— Como pode
dizer isso — praguejou Simion no chão, a falta de ar lhe dominando a garganta
seca — Sendo que só eu é quem sofro?!
Hiraeth
fechou os olhos numa expressão negativa e apertou a luz da palma das mãos, a
dor de Simion rompeu dessa vez com um estrondoso ganido de sofrimento. O elfo
caiu mole no chão. Depois disso, silêncio.
A mulher se
levantou da cama, e caminhou pelo tapete vermelho ornamentado em linhos de ouro
e parou de pé ao seu lado. Abriu as mãos e viu que a joia que segurava parava
de brilhar. Olhou por uma das enormes janelas envidraçadas do quarto e viu que
a lua se escondia por de trás de uma nuvem preguiçosa no céu.
— Está feito.
—ela disse.
Simion estava
estagnado, jogado ao chão de braços abertos e olhos vidrados mirando o teto, um
retrato dos últimos segundos do pesadelo que lhe engolfara.
— Já pode
parar de reclamar, meu amor — disse Hiraeth — A dor já passou e não volta mais.
Não neste mês— mais um sorriso, genuíno. Ela agachou ao seu lado, mostrando a joia
vermelha, admirando-a e compartilhando sua conquista com ele. Estava convicta
de que, assim com ela, Simion apreciava o tesouro. — Poucos são como nós,
querido. Poucos podem ter tanto. A
dor é passageira, mas o poder... Ele dura para sempre.
Hiraeth beijou carinhosamente seus lábios e
Simion, pôde sentir a joia pulsar nas mãos da bruxa no mesmo instante que algo em
seu peito se remexeu. Ela se levantou e partiu, deixando-o largado no tapete até
que o tempo lhe recuperasse.
Era sempre
assim: uma vez por mês, nas noites de lua cheia. A dor, as lembranças, os
arrependimentos.
Horas depois
o elfo se levantou, como nas outras vezes, sozinho e em silencio. Os fantasmas
de seus pensamentos o assombraram no escuro. A dor não era só física. Os deuses o puniam. Ele
fora desgraçado pois decidiu que nessa vida amaria uma bruxa.
Caminhou até
uma das janelas, olhando para nada em especial.
"Tem de ser feito", pensou Simion.
A joia já estava escura como sangue, talvez não durasse mais um ou dois meses. Havia
feito de tudo para não ter de tomar àquela decisão, mas agora não lhe restava
mais opção alguma. O mundo se devastava sob seus pés como se o chão fosse de
vidro.
Simion tinha
de matar Hiraeth.
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