sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

O Veneno de Minha Alma - Parte 1


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                Naquela silenciosa noite, Simion grunhiu entre dentes quando sentiu a fisgada no peito mais uma vez. Parou de caminhar pelo extenso corredor da casa de madeira e tombou o corpo trêmulo para o lado, apoiando-se numa das paredes e ficando próximo à janela que deixava a luz prateada entrar.

                — Sempre na lua cheia — reclamou entre dentes — Como pude me esquecer?

                Simion se perguntou o por que daquilo tudo, e o propósito de seu sofrimento.  Nenhum homem devia sofrer por tomar decisões como as dele. Talvez seu povo fosse de fato amaldiçoado; os elfos púrpuras consideravam-se puros e perfeitos, primogênitos entre seus irmãos raciais; mas que outro elfo no mundo era torturado pelo simples fato de amar?

                No meio de seus devaneios, sentiu de novo a estocada em seu peito, mais forte e voraz. Estremeceu uma das pernas caindo com os joelhos ao chão, e resistiu à dor com os punhos serrilhados, enterrando as unhas na palma da mão. Quando amenizou, voltou a se levantar e esquadrinhou o corredor da casa sob o protestar do chão de madeira rangendo. Levou uma eternidade até ganhar a porta dupla de carvalho escuro no final do caminho.

                Quando a abriu, viu Hiraeth sentada em um cama grande de frente para a porta, com as pernas cruzadas e um de seus braços apoiados sobre a coxa do vestido branco, segurando algo que brilhava intenso, mas abafado pelas duas mãos. Os longos cabelos vermelhos de fogo atenuavam a beleza invejável, e fez com que Simion pensasse mais uma vez que não tinha como saber quando a conhecera: jamais em sonho alguém deduziria que ela fosse uma bruxa.

                — Eu sei que dói — a mulher murmurou enquanto fitava os olhos amendoados ao elfo — Por isso o chamei, sei que dói, e sei que é por minha culpa... — àquele tom de voz culposo, teria feito Simion perdoá-la de imediato, se não fosse a primeira vez que aquilo acontecia.

                — Então pare — respondeu ele, olhando para ela e o que carregava nas mãos — Basta que você —

                Uma dor estrondosa atravessou seu corpo de súbito e impediu que o elfo continuasse. Suas costas contorceram e ele caiu ao chão sem fôlego. Hiraeth continuava imóvel, olhando-o do alto da cama com um semblante que indicava um misto de tristeza e dó.

                — Eu sei, mas não posso — disse ela complacente  — Somos como um agora, meu bem.  Você me tem, eu o tenho — ela sorriu. — As dores são necessárias às vezes, nos tornam mais fortes.

                — Como pode dizer isso — praguejou Simion no chão, a falta de ar lhe dominando a garganta seca — Sendo que só eu é quem sofro?!

                Hiraeth fechou os olhos numa expressão negativa e apertou a luz da palma das mãos, a dor de Simion rompeu dessa vez com um estrondoso ganido de sofrimento. O elfo caiu mole no chão. Depois disso, silêncio.

                A mulher se levantou da cama, e caminhou pelo tapete vermelho ornamentado em linhos de ouro e parou de pé ao seu lado. Abriu as mãos e viu que a joia que segurava parava de brilhar. Olhou por uma das enormes janelas envidraçadas do quarto e viu que a lua se escondia por de trás de uma nuvem preguiçosa no céu.

                — Está feito. —ela disse.

                Simion estava estagnado, jogado ao chão de braços abertos e olhos vidrados mirando o teto, um retrato dos últimos segundos do pesadelo que lhe engolfara.

                — Já pode parar de reclamar, meu amor — disse Hiraeth — A dor já passou e não volta mais. Não neste mês— mais um sorriso, genuíno. Ela agachou ao seu lado, mostrando a joia vermelha, admirando-a e compartilhando sua conquista com ele. Estava convicta de que, assim com ela, Simion apreciava o tesouro. — Poucos são como nós, querido. Poucos podem ter tanto. A dor é passageira, mas o poder... Ele dura para sempre.

                 Hiraeth beijou carinhosamente seus lábios e Simion, pôde sentir a joia pulsar nas mãos da bruxa no mesmo instante que algo em seu peito se remexeu. Ela se levantou e partiu, deixando-o largado no tapete até que o tempo lhe recuperasse.

                Era sempre assim: uma vez por mês, nas noites de lua cheia. A dor, as lembranças, os arrependimentos.

                Horas depois o elfo se levantou, como nas outras vezes, sozinho e em silencio. Os fantasmas de seus pensamentos o assombraram no escuro.  A dor não era só física. Os deuses o puniam. Ele fora desgraçado pois decidiu que nessa vida amaria uma bruxa.

                Caminhou até uma das janelas, olhando para nada em especial.

                "Tem de ser feito", pensou Simion. A joia já estava escura como sangue, talvez não durasse mais um ou dois meses. Havia feito de tudo para não ter de tomar àquela decisão, mas agora não lhe restava mais opção alguma. O mundo se devastava sob seus pés como se o chão fosse de vidro.

                Simion tinha de matar Hiraeth.

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