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A IGREJA DO BEM E DO MAL
Chegou uma carroça puxada por bois. A carga macabra
era composta por mulheres de todas as idades. Velhas, moças e crianças. O povo
aplaudia.
- Um momento de silêncio, em nome de Deus, por
favor. – gritou o padre do alto do palanque.
As pessoas iam parando de berrar aos poucos, um
burburinho tomou conta do povo que ia se acotovelando brigando por espaço, uma
busca incessante por uma visão melhor do espetáculo que iria começar.
- Hereges! – gritou um homem.
O burburinho se intensificou até se transformar em
berros.
Prostrado ali, longe da visão de muitas pessoas,
Daniel olhava para o céu, analisando quanto tempo levaria. O sol ia se
afastando e tudo indicava que a noite de lua seria insuficiente para iluminar sua
volta para casa.
Daniel morava longe. Era a primeira vez que havia
entrado naquele vilarejo e o fizera por ordem de seu mestre:
- Bruxos serão queimados daqui a cinco noites –
havia dito ele – Quero você por lá, é uma cerimônia que todos devemos ver.
Principalmente gente como nós.
Daniel era um bruxo – aprendiz de um. Novo e
inexperiente, nunca havia visto em sua vida uma sentença a hereges. Embora
soubesse que mulheres eram caçadas e queimadas na fogueira da Inquisição,
Daniel nunca havia visto cerimônia como esta.
- Sim, sim – exclamou o padre ao povo, fazendo
gestos com as mãos, pedindo silêncio a plebe. – São hereges, bruxas. Cuspiram
na cruz, invocaram demônios, talvez tenham condenado toda nossa vila perante
Deus.
As pessoas vociferavam.
- Mas ainda assim haverá um julgamento perante os
olhos Dele.—continuou o padre. – E vocês são testemunhas, todos nós somos.
Daniel olhou para o céu novamente, e havia um motivo
maior a fazê-lo. Fitou de longe as crianças que seriam julgadas e ponderou que tudo
àquilo começasse logo. Sabia que enquanto a sentença fosse a tarde, seria mais
branda: enforcamento.
Caso contrário, se a noite caísse e o céu vestisse preto,
as crianças iriam ter de partilhar a dor candente da fogueira, o mesmo que
aconteceria às mulheres mais velhas.
A Igreja era crente do principio que toda bruxa deveria
ser julgada sob o escuro, mas purificada com a luz.
Daniel sonhara uma vez que era queimado vivo – mais
que isso, era um presságio. O pouco dos dons que as pessoas normais ainda
partilhavam dos bruxos.
Lembrou consigo mesmo, da ardente dor que era ser
consumido pelo calor e pela fumaça. Talvez fosse a pior forma de morrer.
- Sem dúvidas
que é. – disse uma voz em suas costas.
Daniel se virou e viu seu mestre, um homem franzino
de cabelo escuro e pele clara. Respondia apenas pela alcunha de “bruxo” e nome
mais algum.
- Morrer na fogueira – continuou, como se pudesse
ler a mente do aprendiz. – Certamente é a forma mais dolorosa de se morrer.
Daniel o ficou observando.
- Mas não para um herege. – disse ele.
- Como? – perguntou Daniel.
A carroça chegou perto do cadafalso e os soldados
abriram as grades por de trás dela. Havia uma enorme cortina vermelha em volta
do palanque, como num circo ou teatro. A Inquisição era um espetáculo a parte.
- Há muitos
instrumentos cruéis para se torturar hereges. Bruxas em especial – disse o
mestre para o aluno. – Você ficaria impressionado com a criatividade e engenho
para nos torturar, rapaz.
As bruxas foram empurradas para subir ao palanque de
madeira. Os xingamentos e os berros se intensificaram. Frutas e repolhos podres
foram jogados contra o rosto delas e das crianças. Não havia perdão para
heresia.
- Elas sofreram torturas severas na prisão daqueles
padres. – analisou Daniel.
- Sem sombra de dúvidas. Vê aqueles buracos na
garganta e no peito? – o bruxo apontou com o queixo. – Chama-se gargantilha do herege, um instrumento
que prendem em seu pescoço impedindo movimentos bruscos, inclusive falar ou
respirar.
Daniel recuou o rosto e mordeu o lábio inferior como
se sentisse dor.
- Não se engane, rapaz. Você nem sequer viu um
empalamento. Isso não é nada. – riu sem graça alguma.
Em seguida, houve um discurso longo e demorado, a
noite vinha chegando. As crianças foram enforcadas, as pessoas bradaram o nome
de Deus.
As preparações foram feitas para o espetáculo, era
hora da fogueira. As cortinas se abriram.
***
Quando saíram da praça e se embrenharam num beco,
Daniel correu à frente sem fôlego pelo terror que assistira.
- Isso é Deus? – questionou horrorizado depois de toda
a tortura.
- Não – disse o bruxo. – Isto é Um Deus.
- Deus. Isto é um Deus...
O bruxo fez que sim.
- Prefiro morrer sem ele, então. – foi um trincar de
dentes, uma mistura de ódio e pavor.
O bruxo balançou a cabeça.
- Não se pode julgar o que as pessoas fazem em nome
de seu Deus – disse o bruxo, tentando explicar. – Não há como apontar as
verdadeiras intenções de um Deus pelas ações de seus seguidores e era isso que
eu –
- Como é? – interrompeu Daniel abruptamente. –
Podemos sim e devemos! Milhares de pessoas estão morrendo em nome Dele. A
Igreja é uma Ordem como todas as outras, inclusive como a nossa. Ela responde
pelos atos de seus membros. O que é Deus sem seus servos? Ele responde pelos
atos deles, sim!
- Não é tão simples.
- E por que não? – houve um momento de resignação
por parte do outro. – Se esse é o caso, que Ele responda contra seus fiéis,
então. Que Ele desça e diga a todos que estão errados. Isso não é tão difícil,
Ele é Deus!
- Não é tão simples. – repetiu o outro.
- Por quê?
Silêncio.
- Por quê?!
- Deus está preso. – disse o bruxo.
Pararam por um momento.
- O quê? Como é?
- Deus está preso, – explicou o bruxo. – Está preso
no mundo dele. Assim como nós estamos no nosso.
O outro raciocinou.
- Só há uma forma de encontrá-lo. – disse o bruxo.
- Morrendo. – disse Daniel, elaborando cada palavra.
O bruxo ergueu o rosto.
– Morremos
para passar para o outro lado e ver Deus no mundo dele... – disse Daniel.
O outro balançou a cabeça. O rapaz ergueu uma
sobrancelha indagando se estava errado.
- Ou será que é Ele que morre? – perguntou o bruxo –
Para vir pra cá.
O rapaz deixou o queixo pender. Uma centelha de
curiosidade faiscou-lhe dos olhos.
- Deus já veio para cá?! – exaltou na pergunta.
Então corrigiu: – Algum Deus, já veio
pro nosso mundo?
O bruxo deixou surgir um sorriso de canto da boca,
satisfeito com o aprendiz.
- Mas é claro.
Daniel se entusiasmou.
- Já viu algum?!
- Sim. Este é o significado de ser um bruxo, rapaz.
Aprender como vê-los, e vê-los de fato, todos os dias.
O rapaz ergueu o corpo, como se já pudesse
pressentir o dia em que enxergaria o primeiro Deus. Já imaginava como seria a
forma de um; que perguntas faria se O visse.
- Eu verei um deles, algum dia? – perguntou.
- Certamente que sim.
- Onde posso encontrá-los?! – quase um grito.
Silêncio.
O bruxo cruzou os braços. Tomou por postura rígida e
ergueu o queixo, olhando para o garoto de cima. Seriedade de professor prestes
a ensinar algo importante; um cuidado firme – as mãos de um médico prestes a
cortar artéria com um bisturi.
- Olhe ao redor.
O garoto inspirou fundo e o fez. Virou o rosto com
cautela para a esquerda e depois para a direita. O beco escuro e sujo
continuava lá e mais ninguém.
- Não vejo nada além de mim e você. – disse.
- Olhe de novo. – falou o bruxo. – Com mais cuidado
dessa vez.
O rapaz ficou mirando a seriedade de seu professor.
Voltou a fazer o que lhe fora ordenado. Olhou ao redor com cautela observando
cada buraco no chão, cada tijolo velho nas paredes e todos os cantos escuros do
beco. Não via nada.
Por um instante pensou que ainda não estivesse
pronto. A capacidade necessária que seu mestre obtinha para enxergar as formas
divinas dos possíveis deuses na Terra talvez ainda não o tivesse agraciado. Mas
ouviu de súbito um ruído, tal qual houvesse alguém corrido assustado para um
canto que não conseguia enxergar.
Sem pensar duas vezes o rapaz pegou impulso e correu
á largas pisadas pelos becos que serpenteavam a cidade.
Ao chegar no final do caminho, viu que perseguia na
verdade um menino. Um mendigo que saia da escuridão, indo para as ruas
principais do vilarejo.
O rapaz viu as carroças de palha e de estrume sendo
puxadas e noutro lado a praça principal, onde havia sido feito o enforcamento e
a fogueira.
Plebeus, monges, mendigos e vassalos se juntavam – as
mesmas pessoas que horas atrás haviam se agrupado para assistir às torturas e
morte que os nobres presenteavam. Daniel ficou estacado.
Poucos segundos depois o bruxo aproximou-se.
- Achou? – disse ele.
- Não – falou o rapaz, desapontado. – Eu me enganei.
O bruxo deixou um leve sorriso escapar.
- Não, você não se enganou.
Daniel o fitou. O bruxo voltou-se para o aluno
surpreso.
- Onde estão os deuses? – perguntou.
- Estão ali. – disse o bruxo, apontando com a cabeça
para as pessoas agrupadas. – Ali também. Alguns estão naquele canto lá. Estão
por toda parte.
- Eles não são deuses – murmurou Daniel. – São
pessoas, piores que animais. Lavradores de terra, vassalos, estupradores,
bandidos. Nenhum deus.
- Você está enganado, meu rapaz. – disse o bruxo.
Daniel o olhou de imediato. – Todos eles são os deuses para quem eles mesmos
oram. Deus veio parar nestas terras, e está preso dentro de todos nós.
Tempo.
- Se isso é verdade, então quem responde às preces
deles quando oram? – perguntou Daniel, indignado.
- Eles mesmos, oras.
- E como poderiam? – disse. – Se não há deus nenhum
que possa atendê-los?!
- Mas eles são, caro Daniel. – o bruxo sorriu. –
Quem pede por justiça? Quem ora aos deuses pela morte dos bandidos,
estupradores e ladrões?
Daniel não disse nada.
- E quem atende suas preces, Daniel? – levantou uma
sobrancelha. – Quem é o carrasco que põem o fogo das fogueiras e puxa a
alavanca da forca?
Tempo.
- Somos nós mesmos, rapaz. Não é deus que desce nas
nossas terras e enforca, tortura e queima. Somos nós mesmos. Nós pedimos, nós
fazemos.
Daniel engoliu em seco.
- E isso é uma magia poderosa, não? – disse o bruxo
em um sorriso sombrio e espantoso. – Nós mesmos fazemos os milagres que
pedimos.
- Isso é horrível! Deus não existe –
- Está enganado – interrompeu-o com seriedade
súbita. – Ele existe; Eles existem.
Estão por toda parte. Apenas são poucos os que conseguem enxergar isso.
Silêncio. Daniel sorveu a ideia como um cubo de gelo
derretendo em chapa quente.
- Isso é horrível.
– disse ele.
- Não, Daniel. É pior.
– a resposta veio de um olhar severo. – Deus não está morto, ele está entre a
gente, e é cruel.
- Antes fosse só isso, mas ele está entre nós e quer
dizer que já não está mais no lugar de onde veio.
Daniel o fitou fundo. O bruxo ergueu o rosto vendo o
céu se fechar em escuridão.
- Se ele veio pra cá, para onde iremos quando
morrermos?
Cortinas.
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