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A sala era grande, alta e redonda. A iluminação alva da lua provinha
do teto circular aberto ao ar livre, e ao longo das paredes, sete estátuas de
mármore cheia de veios representavam figuras endiabradas com garras, chifres e
dentes protuberantes; paralisadas numa alegoria dos pecados mortais. O chão
liso era entrecortado por reentrâncias
na rocha, formando um pentagrama meticulosamente esculpido.
Um homem
tatuado e uma mulher de aparência jovem jaziam na sala de joelhos e braços
amarrados para trás, esperando àqueles que seriam seus carrascos. Simion notou
que possuíam no semblante uma expressão desprovida de esperança; estavam desgarrados
de suas vidas como gado ao aguardo do matadouro.
Resignação, foi a
palavra que lhe veio a cabeça.
— Agora em
suas posições. — falou Hiraeth, depois de cada um puxar dos bolsos os
componentes obrigatórios do ritual.
Os sacerdotes
negros, Illith e Urungoy, caminharam até os dois humanos e arrastaram-nos pelo
enorme pentagrama no chão. Houve um resquício de resistência por parte da
mulher que Illith puxara, mas que foi rapidamente aquietada numa bofetada.
Ao todo eram
seis, e cada um estava prostrado numa ponta cardeal baseada nos vértices da
estrela. Empunhando os componentes mágicos, Hiraeth começou o louvor, logo
depois sustentada por uma cantiga macabra entoadas por Urungoy e Illith. Não
demorou muito para que chegasse a vez de Simion, que ergueu os braços e proferiu
as palavras em uníssono.
O elfo
púrpura já havia se encontrado ali antes, naquela mesma situação perniciosa, e
quando minutos depois do início do ritual o céu começou a lançar correntes de
vento atroz, arrancando árvores do chão, anunciando uma tempestade com os
clarões por de trás das nuvens carregadas, Simion soube que estava próximo.
— Agora! —
gritou Hiraeth, e todos eles puxaram um punhal prateado contra o vendaval. Os
três bruxos sangraram os próprios pulsos, largando os componentes ao chão. O
pentagrama foi tomada por uma aura de luz sombria e um ruído estranho no céu
fez a espinha de Simion gelar.
Illith foi o
primeiro, caminhando até a mulher ajoelhada, seguindo a aresta do desenho
geométrico. Girou por de trás dela, e num puxão, ergueu seu rosto em direção ao
céu tempestuoso.
— Sangue
jovem por libido inacabável! — gritou.
A faca encontrou o pescoço da menina, rasgando-lhe
a pele fora a fora. Um jorro incontido de sangue banhou o desenho no chão. O
corpo da garota caiu mole, a luz negra assimilando suas voltas.
"Ainda não", lamentou Simion,
entre dentes. "Ainda não é hora".
Em seguida
marchou Urungoy. Equilibrando-se pela linha reta chegou até o homem do outro
lado da sala; agarrou-o pela nuca.
— Sangue
mágico, por domínio arcano. — e rasgou-lhe a traqueia.
Ouviu-se um
trovão lá no alto no mesmo instante que o vermelho esguichou do pescoço para
frente. As nuvens do céu, escuras e pesadas como chumbo, já haviam escondido o
luar na tempestade. Lá fora, as árvores lutavam para se manter no chão, as
raízes estalando sob o solo.
Hiraeth puxou
a joia e a ergueu para o centro do pentagrama, Simion fitou seu coração
amaldiçoado nas mãos da mulher.
— A vida
esculpida, por uma juventude longeva! — disse ela, e antes que pudesse qualquer
coisa, Simion sacou uma faca escondida e cortou o pulso, derramando seu sangue
púrpura no desenho.
— Não! —
gritou Illith.
Houve um
segundo de exasperação.
— O que está
fazendo, idiota?! — Urungoy arguiu.
O elfo
mostrou os dentes.
— Façamos uso
do sacrifício de vocês... com um pedido de verdade. — disse olhando para
Hiraeth que mantinha o olhar paralisado nos dele. Ela tentou se mover para
continuar o ritual, mas trincou os olhos ao perceber que estava petrificada em
sua posição, as mãos erguidas a frente segurando a joia. Os outros dois
repetiram a intenção e não obtiveram sucesso.
"Como as estátuas da sala". —
o elfo deu uma risada sarcástica.
— Simion... O
que você vai... — a pergunta de Hiraeth ficou no ar. O elfo púrpura sentiu o
aperto sobrenatural no peito, algo o forçando a desistir.
— Vai prender
nossas almas no limbo, imbecil, você não tem nada a oferecer — urrou Urungoy.
— Errado. — disse
ríspido.
Simion partiu
ágil, sobre a linha que ligava o cardeal a Urungoy e, num instante, estava sobre
ele.
— Eu tenho
vidas. A vidas de todos vocês.
Antes que o
contrariasse, a faca do elfo assobiou no ar e foi de encontro ao pomo de adão
do homem. Um barulho nojento vazou no canto da lâmina junto com incontáveis
filetes de sangue, e então o elfo puxou a arma para si. O corpo do brutamontes
tombou pesado.
— NÃO! — Illith
exasperou, tentando se mover. Simion atravessou a sala como um raio sob as
arestas e chegou até ele, gracioso.
— Por favor,
eu —
Corte.
O corpo do
segundo caiu, num instante, mole.
Hiraeth mexeu
os olhos como pôde, mirando Simion com uma expressão de pavor, temendo ser sua
hora.
— Simion... —
gaguejou — Por que me traiu?
O elfo sabia
que não havia tempo, e um relâmpago o lembrou disso quando arranhou as nuvens
com um ruído tremendo.
— Eu não
seria capaz disso — Simion murmurou com a voz abafada — Só que estou cansado.
Cansado de sofrer, Hiraeth — e se aproximou.
Lágrimas
brotaram dos olhos da mulher.
— Então me
mate. Acabe com esse desespero — Hiraeth soluçou. — Acabe com isso, me mate...
Simion
enxergou o sofrimento nos olhos da mulher. Seus segredos sombrios lhe saltaram
na memória no instante que avistou a joia; assim como ela antes havia lhe entregado
as verdades de Hiraeth, no simples toque. Se perguntou se a maldição havia lhe
desgraçado, tanto quanto ele a amada. A pedra não só o corrompeu, percebera. Numa
outra vida tudo teria sido diferente, quem sabe?
O suor nas
mãos de Simion escorregavam o cabo da faca.
— MATE-ME! — Hiraeth berrou.
Um estrondo
maciço ecoou na parte do paredão da montanha ao lado, um rochedo tão enorme
quanto um navio se desprendeu mergulhando no precipício.
Simion
sorriu.
— Eu não
posso.
O elfo girou
a ponta da arma para si, fincou-a no ventre sem cerimônias. Abriu a pele lilás
num puxão de baixo a cima, da barriga ao pescoço. Hiraeth gritou, a visão do
elfo pesando. Uma onda de sensações indescritíveis subjugou o que restara dos
sentidos; tato, visão, olfato, paladar, audição... Tudo se desligou. Simion
piscou com a última imagem à sua frente: Hiraeth.
Escuridão.
* * * * *
Quando anos
depois uma carroça atravessou uma estradinha esburacada e ladeada por milharais
e outras plantações de trigo, os camponeses da cidade de Portfeld responderam as perguntas do cocheiro apontando para o
vilarejo que permeava o redor do castelo.
— E o que
aconteceu no final? — perguntou uma garotinha de cabelos em caracóis.
Uma procissão
de crianças estavam sentadas a beira do lago que abastecia o vilarejo,
impressionadas, queriam saber o final da história dramática cheia de magia
negra e mistérios.
— Bem — disse
a menina em pé, com os joelhos brancos ralados da infância, e o vermelho vivo
do cabelo dançando arredio na brisa leve. — Acontece o que acontece como nas
outras histórias. Eles vivem felizes para sempre.
— Ahh,
bobagem! — reclamou um menino do fundo. — Hiraeth não sabe terminar a história
e não teve coragem de dizer o que acontece com eles no final...
As crianças
olharam para ele.
— O quê?
— Eles
morrem, é claro. — ele disse encolhendo os ombros. Um burburinho entre eles
começou, alguns retorcendo o rosto para aquilo.
— Eu prefiro
acreditar no final da Hiraeth — disse uma garotinha de olhos azuis e sardas no
rosto — É muito mais bonito.
— Pft... — reprovou o garoto. — Mas
histórias assim não acontecem de verdade. Vamos, eu prefiro brincar de
cavaleiro contra o ladrão!
As crianças
levantaram e correram rapidamente se espalhando no vilarejo, pegando pedaços de
pau e galhos no chão, improvisando-os como armas de brinquedo. Hiraeth ficou
sozinha na beira do lago. Seu olhar voltou-se para água enquanto correu os
delicados dedos até o relicário que tinha no pescoço; uma pedrinha vermelha
presa num cordel.
Um cavalo relinchou,
anunciando uma carroça que acabara de frear no meio do vilarejo. Distante em
seus pensamentos, Hiraeth não percebeu quando passos se aproximaram dela e
estacou próximo.
— Ei, menina
de cabelos vermelhos
A garota se
virou. Era um jovem, oito ou nove anos, assim como ela. Cabelos negros e
escorridos possuía um semblante calmo e bonito. Hiraeth apertou a joia,
escondendo-a — não a mostraria para ninguém. Sob o olhar atento do rapaz, ele
sorriu.
— Você também
tem não é? As visões... — ele remexeu os bolsos e tirou uma lasca de pedra
vermelha, semelhante com a dela, estendeu em sua direção, mostrando. — Veja. Eu
também posso ver... As pessoas, as visões...
Hiraeth
pendeu a boca, não acreditara naquilo. Achara desde cedo que havia nascido com
alguma maldição; sonhos de bruxa? Era perigoso demais.
— Eu também
tinha medo no começo — ele disse — Mas depois entendi o que significa, a pedra
me contava uma história... Me trouxe até aqui.
Ela
compreendeu.
— Qual é o
seu nome?
— Hiraeth... —
disse num tom inseguro. Ele sorriu, e ela retribui o mesmo. Algo no peito do
jovem se mexeu. — E você?
O menino
olhou para trás, o cocheiro, o homem de cabelos negros e azulados que o adotara
desde cedo, estava certo quando o aconselhava sobre as visões: Bielefeld era o
reino da cavalaria, dos heróis e da nobreza. Mas também era o reino das
verdades e da bondade pura. Tudo que havia de acontecer, era porque era justo.
O rapaz
voltou-se para a jovem ruiva e sorriu.
— Me chamo
Simion.
As duas joias ascenderam.
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~ Christian Vinharski